Paisagem com dromedário (romance, Companhia das Letras, 2010)
Release
Autoexilada numa ilha vulcânica, Érika grava mensagens em que relata o seu dia-a-dia e acontecimentos recentes de sua vida. Nas 22 gravações que compõem Paisagem com dromedário, ela tenta reconstituir seu passado e a relação profunda que manteve com Alex.
Artistas plásticos, Érika e Alex se envolveram durante anos em experiências estéticas e existenciais, que incluíam obras em parceria e um insólito triângulo amoroso com a jovem Karen.
A perplexidade diante da morte de Karen, e do seu próprio comportamento em relação à amiga, da qual se afastou ao saber que ela estava com câncer, parece ser uma das motivações para o exílio voluntário de Érika e para sua rememoração do passado.
No centro das inquietações da narradora está a questão da identidade. Onde começava a sua personalidade de artista e de mulher e onde terminava a influência ao mesmo tempo fecunda e opressora de Alex? Érika se entrega a esse exercício retrospectivo, em que se misturam a memória, a imaginação e um implacável raciocínio crítico.
Em Paisagem com dromedário, Carola Saavedra constrói um romance através de transcrições de gravações e ruídos, aproximando-o do cinema e do radioteatro. Reafirma assim o vigor e a originalidade de sua escrita, uma das mais marcantes do atual panorama literário brasileiro.
Video
Trecho
Gravação 1
Barulho de vento e de ondas batendo num rochedo. Pequenas pedras caindo na água. Passos. Interrupção. Voz.
Estou no extremo sul da ilha. Se eu nadasse numa linha reta, imagino que em algum momento chegaria ao Antártico. Terras austrais. De qualquer forma, o extremo sul não significa muita coisa, quando o extremo norte fica a pouco mais de duas horas de carro. Poucas horas de carro, e pronto, terminou a ilha. O mar, em compensação, parece inesgotável. Assustador. O mar aqui é um mar que ainda não foi domesticado. Nunca lhe foi imposto limite algum. Até mesmo as cores, o cheiro, as algas, tudo nele parece que acaba de surgir. E me vem sempre a sensação de estranhamento quando olho em volta e vejo estradas, casas, pessoas, como em qualquer outro lugar.
Faz uma ou duas semanas que estou aqui. Talvez sejam apenas alguns dias, não sei. Alex, os dias passam de modo incomum neste lugar. Mas eu não queria começar falando da ilha, também não queria começar reclamando de que o tempo passa rápido ou devagar. Queria começar falando de uma imagem. Não sei se era uma fotografia ou se fui eu que guardei aquele momento como algo estático na memória. Antes que as coisas com Karen tomassem o rumo que tomaram. Nós três. A imagem era assim: Karen abrindo uma garrafa de vinho, você a abraçava pelas costas, dizia alguma coisa em seu ouvido. Karen ria, envergonhada. Karen sempre ria assim, como se o riso fosse algo obsceno. Ela abaixava a cabeça, desviava o olhar, e ria. Eu, sentada naquela tua poltrona, o couro gasto, desbotado, eu ria também, mas meu riso, como sempre, era quase uma gargalhada. Eu segurava uma taça ainda cheia. Não sei mais qual era o motivo, mas lembro que naquele instante tudo me parecia tão suave, tão perfeito, como se fosse impossível qualquer incompreensão, qualquer desentendimento.
(…)
Resenhas