Toda terça (romance, Companhia das Letras, 2007)
Release
Num divã de analista, no Rio de Janeiro, Laura fala de sua relação com um homem casado e com um estranho que conheceu numa sessão de cinema. Muito longe dali, em Frankfurt, o latino-americano Javier tem um caso com uma estudante de antropologia chamada Ulrike. Conforme o livro se desenrola episódios aparentemente desconectados vão tecendo uma surpreendente trama de encontros e desencontros amorosos, o mote deste excelente romance de estréia.
“É um livro do estilo ‘modelo para armar’, cujas peças são fragmentos, aspectos, versões de uma história que cabe ao leitor reconstruir”, diz a autora. Para tanto, é preciso ler as entrelinhas das diferentes vozes que compõem o mosaico, principalmente as de Laura e Javier. Enquanto a dela é apaixonada e dispersa, recheada de pistas fragmentadas que o analista ajuda a decifrar – como a relação com o homem casado, e sonhos que podem guardar um significado sombrio – , a dele é racional e melancólica, detalhista em suas descrições do cotidiano num país estranho, em meio a uma cultura – a de Ulrike e seus amigos politicamente corretos – que não tem paciência para aceitar. “Os narradores, nem sempre confiáveis, com freqüência mentem, distorcem ou deixam de lado informações importantes”, explica Saavedra. “Não raro, é justamente isso que vai ser um ponto chave, revelando muito mais sobre o personagem do que aquilo que ele acaba de narrar.”
Toda terça, em que se alternam drama e um sutil senso de comédia, é um retrato de como essas personalidades, ou ao menos suas versões externas, são construídas no mundo contemporâneo. Um mundo cheio de barreiras econômicas e sociais, desencantado com a perda dos grandes ideais coletivos, mas com caminhos ainda abertos para quem busca, mesmo de forma pouco convencional, o conforto dos afetos possíveis.
Trecho
1.
– Outro dia sonhei que atravessava o deserto do Atacama, horas e horas atravessando o Atacama, ao meu lado no carro, dirigindo, alguém que eu não conseguia reconhecer. Alguém que eu conhecia, eu tenho certeza, mas o rosto, por mais que eu tentasse, o rosto era apenas um esboço, um borrão. Lembro que eu não queria estar ali, eu queria qualquer outra coisa, sei lá, ir ao cabeleireiro, ao cinema, mas por algum motivo eu estava ali, atravessando o Atacama, e isso me desesperava.
– Te desesperava, mas por quê?
Otávio me olhava com interesse, aliás, nunca ninguém havia demonstrado tanto interesse pelas minhas palavras como Otávio, para ele tudo meu era importante, o que eu dizia, o que eu deixava de dizer, o que eu pensava, o que eu deixava de pensar, o que eu gostava, o que eu não gostava, cada gesto, cada detalhe. Tudo ele percebia, tudo ele ia guardando como se fossem informações essenciais, indispensáveis. Sorte a minha ter encontrado um homem assim, ainda por cima alto, bonito, jovem até, pelos meus cálculos não mais que quarenta, quarenta e cinco anos. Vestia-se com elegância, uma elegância blasé, eu diria, como se ser elegante fosse sua característica mais natural, como se ser elegante fosse algo assim, inevitável. Otávio era insuportavelmente elegante e parecia envolto numa aura de complacência e serenidade, essa aura que carregam as pessoas que, mesmo nas piores circunstâncias, permanecem impávidas, o mundo se desintegrando à sua volta, e elas ali, impecáveis, como se tudo não passasse de uma leve brisa, do vai-e-vem de um leque, algo que por um lado me atraía mas por outro me intimidava. A verdade era que ele me intimidava, apesar do interesse, da atenção ininterrupta que me dedicava, da sensação de que ele era a pessoa mais importante da face da Terra. Apesar disso, apesar de tudo, Otávio me intimidava. Talvez os seus cabelos bem penteados, suas roupas recém-passadas, aquela maneira de sentar-se, tão correta e ao mesmo tempo tão à vontade. Às vezes eu me pegava em estranhos exercícios mentais na intenção de rebaixá-lo, de torná-lo um pouco mais acessível, mais real, exercícios que consistiam basicamente em imaginá-lo em situações pouco favoráveis ou até mesmo embaraçosas. O problema era que, antes mesmo que essas imagens chegassem a se formar, vinham outras, muito mais poderosas, que se sobrepunham, no melhor momento, ou, talvez, no pior momento, intervalo, e novamente Otávio, perfeito, inabalável. Não tinha jeito, ao seu lado eu sempre me sentiria inadequada, insignificante, uma coitadinha, como se na presença de Otávio tudo aquilo que antes era bom se tornasse pouco: o meu cabelo, o meu vestido, o cruzar das minhas pernas, tudo tão pequeno, tão ridículo. Ah, Otávio era belo e inatingível.
– No que você está pensando, Laura?
– Em nada.